MITO E FILOSOFIA, PLATÃO E ARISTÓTELES.

MITO E FILOSOFIA, PLATÃO E ARISTÓTELES.
O mito é a primeira explicação, produzida pela humanidade, para justificar a existência dos fenómenos que rondavam o nosso mundo. A principal característica desse tipo de explicação era o discurso fabuloso, ilógico, sobrenatural, não racional. Geralmente, acreditava-se numa pessoa mais experiente que tinha autoridade por ter testemunhado o fato que está narrando ou por ter recebido a notícia de quem testemunhou os acontecimentos narrados.
A Filosofia nasce da necessidade de explicar os fenómenos de forma racional e lógica, saindo do mundo mágico e misterioso da mitologia. Mas não podemos deixar de considerar que a mitologia provoca o surgimento do pensamento filosófico. A filosofia, então, vai dando os seus primeiros passos com os filósofos pré-socráticos e se paradigmática com Sócrates que acreditando nas potencialidades da razão aponta o caminho para uma vida ética a partir do controle dos instintos. O pensamento racional já estava instaurado na Grécia antiga. Os pós-socráticos, em especial, Platão e Aristóteles, vão criar escolas filosóficas com perspectivas bem diferenciadas demonstrando assim que a principal característica da filosofia é a produção de ideias e o debate público dessas indagações sobre a vida, a morte, o bem, o mal, o quente, o frio, o Ser e o Devir, a existência e essência.
As principais questões apresentadas por Platão na sua filosofia são: a preocupação com a política e os rumos do Estado, a ética, a estética, desconfia dos sentidos e recusa a passagem da sensação ao conceito, não se interessa pelo estudo da natureza, antecipa-se ao método de Descartes (1596- 1650) e acredita num mundo transcendente, onde estão as ideias inatas (nascidas connosco) nas quais se concentra toda a realidade, a razão aniquila e destrói as paixões. Sair da caverna é alcançar o mundo das ideias.
Aristóteles, mesmo sendo discípulo de Platão, não vai concordar com o seu pensamento apresentando um outro olhar sobre a filosofia que se caracteriza pela: vocação naturalista, observação do mundo físico/ concreto, onde os conceitos são tirados da experiência mediante a evidência, se interessa pelo estudo da natureza, o verdadeiro conhecimento vem da experiência, a razão governa e domina as paixões. “Nada está na mente que não tenha passado pelos sentidos”.

O MITO DE DESCARTES
    
     (1)   A Doutrina Oficial

Há uma doutrina acerca da natureza e lugar das mentes que tem tanta preponderância entre os especialistas e mesmo leigos, que merece ser descrita como a teoria oficial. Muitos filósofos, psicólogos e professores religiosos subscrevem, com reservas mínimas, as suas principais teses e, embora admitam que existem certas dificuldades teóricas nesta teoria, têm a tendência de pensar que estas podem ser superadas sem fazer sérias modificações na arquitectura da teoria. Irei defender aqui que os princípios centrais da doutrina estão errados e entram em conflito com tudo o que sabemos sobre as mentes, quando não estamos especulando acerca delas. A doutrina oficial, que vem principalmente de Descartes, é mais ou menos a seguinte. Com as duvidosas excepções dos idiotas e das crianças de colo, todo ser humano tem um corpo e uma mente. Alguns prefeririam dizer que todo ser humano é um corpo e uma mente. O seu corpo e a sua mente são geralmente reunidos, mas depois da morte do corpo sua mente poderia continuar a existir e a funcionar. Os corpos humanos estão no espaço e estão sujeitos às leis mecânicas que governam todos os outros corpos existentes no espaço. Os processos e estados corporais podem ser verificados por observadores externos. Assim, a vida corporal de um homem é um assunto tão público quanto as vidas de animais e répteis e até mesmo os cursos de árvores, cristais e planetas.
Mas as mentes não estão no espaço e as suas operações não estão sujeitas a leis mecânicas. O funcionamento [workings] de uma mente não é testemunhável por outros observadores; o seu curso é privado. Só eu posso ter conhecimento directo dos estados e processos de minha própria mente. Uma pessoa vive portanto através de duas histórias colaterais, consistindo uma no que acontece no e ao seu corpo, a outra no que acontece na e à sua mente. A primeira é pública, a segunda privada. Os acontecimentos da primeira história fazem parte do mundo físico, os da segunda são acontecimentos do mundo mental. Tem sido discutido se uma pessoa monitora ou pode monitorar todos os episódios de sua vida privada, ou somente alguns deles; mas, de acordo com a doutrina oficial, ele tem conhecimento directo e indubitável de pelo menos alguns desses episódios. Pela consciência, auto-consciência e introspecção, ele está informado de maneira directa e autêntica dos atuais estados e operações de sua mente. Pode ter muitas ou poucas dúvidas acerca dos episódios simultâneos e adjacentes no mundo físico, mas não pode ter
nenhuma pelo menos quanto a parte do que está momentaneamente ocupando a sua mente.
É costume exprimir esta bifurcação de suas duas vidas, e de seus dois mundos, dizendo que as coisas e acontecimentos que pertencem ao mundo físico, incluindo seu próprio corpo, são externos, enquanto o funcionamento de sua própria mente é interno. Esta antítese de exterior e interior deve evidentemente ser interpretada como uma metáfora, dado que as mentes, não estando no espaço, não poderiam ser descritas como estando especialmente dentro de qualquer coisa, ou como se se passassem coisas especialmente dentro delas. Mas são comuns os deslizes desta boa intenção e encontramos teóricos especulando sobre o modo segundo o qual os estímulos, cujas fontes físicas se encontram a metros ou quilómetros de distância da pele da pessoa, podem dar origem a respostas mentais dentro de seu crânio, ou como decisões enquadradas no âmbito do seu crânio podem comandar movimentos das suas extremidades.
Mesmo quando ‘interior’ e ‘exterior’ são interpretados como metáforas, o problema de como a mente e o corpo de um indivíduo se influenciam mutuamente é notoriamente carregado de dificuldades teóricas. O que a mente deseja é executado pelas pernas, braços e língua; o que afecta o ouvido e a olho tem algo a ver com as percepções da mente; as caretas e os sorrisos denunciam a disposição da mente, e os castigos corporais conduzem, pelo menos assim se espera, ao aperfeiçoamento moral. Mas as transacções efectivas entre os episódios da história privada e os da história pública permanecem misteriosas, dado que por definição não podem pertencer a nenhuma delas. Não poderiam ser descritas entre os acontecimentos relatados na autobiografia de uma pessoa relativos à sua vida interior, mas também não poderiam ser descritos entre os acontecimentos mencionados na biografia, escrita por outro indivíduo, da vida pública dessa pessoa. Não podem ser inspeccionados nem por introspecção nem por experimento de laboratório. São teoricamente flutuantes e têm sido, através dos tempos, passados dos fisiologistas para os psicólogos e dos psicólogos para os fisiologistas. Na base desta representação, em parte metafórica, da bifurcação das duas vidas de uma pessoa, há aparentemente uma pretensão mais profunda e filosófica. Supõe-se que há duas espécies diferentes de existência ou estatuto.
O que existe ou acontece pode ter o estatuto de existência física, ou pode ter o estatuto de existência mental. Um pouco como as faces das moedas são caras ou coroas, ou como as criaturas vivas são macho ou fêmea, assim se supõe que determinada existência é existência física, e outra existência é existência mental. É característica necessária daquilo que tem existência física que ele está no espaço e no tempo, e é característica necessária do que tem existência mental que ele está no tempo mas não no espaço. O que tem existência física é composto de matéria ou é uma função da matéria; o que tem existência mental consiste em consciência ou é uma função da consciência. Existe, assim, uma oposição de polos entre mente e matéria, oposição essa que é muitas vezes apresentada do seguinte modo: os objectos materiais estão situados num campo comum, chamado “espaço”, e o que acontece a um corpo numa porção de espaço está mecanicamente relacionado com o que acontece a outros corpos noutras porções do espaço. Mas os acontecimentos mentais ocorrem em campos isolados, chamados “mentes”, e não há, exceptuando talvez a telepatia, relação causal directa entre o que acontece numa mente e o que acontece noutra. Somente por intermédio do mundo físico público pode a mente de uma pessoa influenciar a mente de outra. A mente é o seu próprio lugar e, na sua vida interior, cada um de nós vive a vida de um Robinson Cruso é fantasma. As pessoas podem ver, ouvir e sacudir o corpo dos outros, mas são irremediavelmente cegas e surdas ao funcionamento da mente dos outros, e sem acção nelas. Que espécie de conhecimento pode ser assegurado sobre o funcionamento da mente? Por um lado, de acordo com a teoria oficial, uma pessoa tem conhecimento directo da melhor espécie imaginável do funcionamento da sua própria mente. Os estados e processos mentais são (pelo menos normalmente) estados e processos conscientes e a consciência que os ilumina não pode criar ilusões e não deixa margem a quaisquer dúvidas. Os pensamentos actuam de uma pessoa, as suas sensações e desejos, as suas percepções, recordações e imaginações são intrinsecamente “fosforescentes”; a sua existência e natureza são inevitavelmente reveladas aos seus possuidores. A vida interio é uma corrente de consciência [stream of consciousness] de tal espécie que seria absurdo sugerir que a mente, cuja vida é essa corrente, desconhecesse o que se passa nela. É verdade que a evidência recentemente aduzida por Freud parece mostrar que existem canais afluentes desta corrente que correm escondidos do seu possuidor. As pessoas são movidas por impulsos cuja existência repudiam vigorosamente. Alguns dos seus pensamentos diferem daqueles que confessam, e alguns dos actos que pensam ter
desejo de praticar não são na verdade desejados por elas. As pessoas são profundamente enganadas por algumas das suas próprias hipocrisias e ignoram efectivamente fatos da sua vida mental que, segundo a teoria oficial, lhes deveriam ser patentes. Os defensores da teoria oficial, no entanto, têm tendência para manter que de qualquer modo, em circunstâncias normais, um indivíduo deve ter conhecimento directo e autêntico do estado actual e da actividade da sua mente.
Para além de estar geralmente em poder destes chamados dados imediatos da consciência, também se supõe que o indivíduo é capaz de exercer de vez em quando uma determinada espécie de percepção, uma percepção interior ou introspecção. Pode dar uma “olhada” (não óptica) ao que está passando na sua mente. Pode não só observar e examinar uma flor através do seu sentido da visão, escutar e distinguir as notas de um sino através do sentido da audição, como também olhar reflexiva e introspectivamente, sem qualquer órgão corporal dos sentidos, para os episódios correntes da sua vida interior. Também é comum supor-se que esta auto-observação é imune à ilusão, à confusão ou à dúvida. O relato de uma mente sobre os seus próprios assuntos é de uma certeza superior ao melhor do que é possuído pelos seus relatos de assuntos do mundo físico. As percepções sensoriais podem ser enganadas ou confundidas, mas não a consciência e a introspecção. Por outro lado, uma pessoa não tem acesso directo de nenhuma espécie aos eventos da vida interior de outra. Não pode fazer mais do que tirar inferências problemáticas, partindo do comportamento físico observado do corpo de outra pessoa para os seus estados mentais, os quais, por analogia com o seu próprio comportamento, julgue serem apontados por esse comportamento. O acesso directo ao funcionamento de uma mente é um privilégio dessa própria mente; à falta desse acesso privilegiado, o funcionamento de uma mente está inevitavelmente oculto para qualquer outra pessoa. Pois os supostos argumentos, partindo de movimentos físicos semelhantes ao seu próprio, para os funcionamentos mentais semelhantes, não teriam qualquer possibilidade de corroboração observacional. Não é de estranhar, portanto, que um adepto da teoria oficial ache difícil resistir a esta consequência das suas premissas, de que não há qualquer razão de peso para acreditar que existam outras mentes além da sua. Mesmo se prefere acreditar que em outros corpos humanos há mentes semelhantes à sua, não pode afirmar que é capaz de descobrir as suas características individuais ou as coisas particulares que essas mentes fazem ou experimentam. A solidão absoluta é, nesta ordem de ideias, o destino inelutável da alma. Só os nossos corpos se podem encontrar. Como corolário necessário deste esquema geral, está implicitamente indicada uma maneira especial de interpretar os nossos conceitos ordinários de faculdades e operações mentais. Os verbos, substantivos e adjectivos com os quais na vida normal descrevemos a sagacidade, carácter e acções de mais alto nível das pessoas com quem contactamos, devem ser interpretados como significando episódios especiais das suas histórias secretas ou como significando tendências para que tais episódios ocorram. Quando se descreve alguém como conhecendo, acreditando ou julgando alguma coisa, esperando, receando, planejando ou evitando qualquer coisa, projectando isto ou divertindo-se com aquilo, supõe-se que estes verbos indicam a ocorrência de modificações específicas na sua (para nós) oculta corrente de consciência. Só o seu próprio acesso privilegiado a esta corrente, em ciência [awareness] e introspecção directas, poderia dar testemunho autêntico de que estes verbos de conduta mental foram correta ou incorrectamente aplicados. O espectador, seja ele professor, crítico, biógrafo ou amigo, nunca pode ter certeza de que os seus comentários tenham quaisquer laivos de verdade. Mesmo assim, foi justamente porque de fato todos sabemos fazer tais comentários, os fazemos de uma maneira geral correctamente, e os corrigimos quando se tornam confusos ou errados, que os filósofos acharam necessário construir as suas teorias sobre a natureza e lugar das mentes. Sendo de opinião de que os conceitos de conduta mental [mental-conduct concepts] são usados regular e efectivamente, procuraram estabelecer convenientemente a sua geografia lógica. Mas a geografia lógica recomendada oficialmente implicaria que não se poderia fazer uso regular ou efectivo destes conceitos de conduta mental nas nossas descrições das mentes de outras pessoas, ou prescrições em seu favor.

(2) O Absurdo da Doutrina Oficial
É esta, em linhas gerais, a teoria oficial. Falarei muitas vezes dela, com exagero deliberado, como o “dogma do Fantasma na Máquina” [Ghost in the Machine].
Assim, as relações interinstitucionais que podem ser afirmadas ou negadas entre a Igreja e o Ministério do Interior, não podem ser afirmadas ou negadas entre qualquer deles e a Constituição Britânica. A “Constituição Britânica” não é um termo do mesmo tipo lógico de “Ministério do Interior” ou de “Igreja da Inglaterra”. De um modo em parte semelhante, Fulano pode ser um parente, um amigo, um inimigo ou um estranho para Sicrano; mas não pode ser nenhuma destas coisas em relação ao Contribuinte Médio. Ele é capaz de falar acertadamente em certas discussões do Contribuinte Médio, mas ficaria confuso ao tentar explicar porque não poderia encontrá-lo por acaso na rua, como poderia acontecer com Sicrano. É pertinente em relação ao assunto que nos ocupa notar que, enquanto o estudante de ciências políticas continuar a pensar na Constituição Britânica como a contrapartida de outras instituições, terá tendência para descrevê-la como uma instituição misteriosamente oculta; e enquanto Fulano continuar a pensar no Contribuinte Médio como um concidadão, terá tendência para pensar nele como um homem imaterial e fugidio, um fantasma que está em toda parte e em parte nenhuma. O meu propósito destrutivo é mostrar que uma família de erros de categoria radicais é a fonte da teoria da vida dupla. A representação de uma pessoa como um fantasma misteriosamente escondido numa máquina deriva deste argumento. Porque, como é verdade, os actos de uma pessoa pensar, sentir e ter intenções não podem ser descritos exclusivamente na linguagem da física, da química e da fisiologia; portanto, teriam de ser descritos em linguagens paralelas. Assim como o corpo humano é uma unidade complexa organizada, também a mente humana teria de ser outra unidade complexa organizada, ainda que composta por uma substância de tipo diferente e com diferente tipo de estrutura. Ora, mais uma vez, como o corpo humano, tal como qualquer outra parcela de matéria, é um campo de causas e efeitos, também a mente deveria ser outro campo de causas e efeitos, ainda que (Deus seja louvado!) não causas e efeitos mecânicos.

(3) A Origem do Erro de Categoria
Uma das principais origens intelectuais do que ainda tenho que provar ser o erro de categoria cartesiano parece ser a seguinte. Quando Galileu mostrou que os seus métodos de descoberta científica eram capazes de estabelecer uma teoria mecânica que abrangeria todos os ocupantes do espaço, Descartes encontrou em si próprio duas razões em conflito. Como homem de génio científico, não tinha outro remédio senão sancionar as descobertas da mecânica, mas, como homem religioso e moral, não poderia aceitar, como Hobbes aceitou, os desencorajantes corolários dessas descobertas, ou seja, que a natureza humana difere apenas em grau de complexidade do mecanismo de um relógio. O mental não poderia ser apenas uma variedade do mecânico.
Ele e filósofos subsequentes, natural mas erroneamente, arranjaram a seguinte escapatória. Visto que as palavras de conduta mental não devem ser interpretadas como significando a ocorrência de processos mecânicos, elas devem ser interpretadas como significando a ocorrência de processos não mecânicos; visto que as leis mecânicas explicam movimentos no espaço como os efeitos de outros movimentos no espaço, outras leis devem explicar parte do funcionamento não espacial das mentes como os efeitos de outros funcionamentos não espaciais das mentes. A diferença entre os comportamentos humanos que descrevemos como inteligentes e os que descrevemos como não inteligentes, deve ser uma diferença de causa e acção; assim, enquanto alguns movimentos das línguas e membros humanos são efeitos de causas mecânicas, outros devem ser efeitos de causas não mecânicas, isto é, alguns são originados por movimentos de partículas de matéria, outros são originados pelo funcionamento da mente. As diferenças entre o físico e o mental eram assim representadas como diferenças dentro do quadro comum das categorias de “coisa”, “substância”, “atributo”, “estado”, “processo”, “mudança”, “causa” e “efeito”. As mentes são coisas, mas coisas de espécie diferente dos corpos; processos mentais são causas e efeitos, mas espécies diferentes de causas e efeitos dos movimentos corporais. E assim sucessivamente. Assim, como o estrangeiro esperava que a Universidade fosse um edifício adicional, em parte semelhante a uma faculdade mas também consideravelmente diferente, também os repudiadores do mecanismo representavam as mentes como centros adicionais dos processos causais, bastante semelhantes a máquinas, mas também consideravelmente diferentes delas. A sua teoria era uma hipótese para-mecânica. Que esta suposição estava no coração da doutrina é mostrado pelo fato de que se sentia, desde o princípio, ter havido uma grande dificuldade teórica em explicar como mentes podiam influenciar e ser influenciadas por corpos. Como pode um processo mental, por exemplo um desejo, causar movimentos espaciais, como os movimentos da língua? Como pode uma mudança física do nervo óptico ter entre os seus efeitos uma percepção da mente de um clarão de luz? Esta notória dificuldade mostra por si própria o molde lógico no qual Descartes comprimiu a sua teoria da mente. Era o mesmo molde pelo qual ele e Galileu tinham ajustado suas mecânicas. Aderindo, ainda que involuntariamente, à gramática da mecânica, tentou evitar o desastre, descrevendo as mentes no que era meramente um vocabulário invertido. O funcionamento da mente tinha de ser descrito por meio dos meros negativos das descrições específicas feitas para o corpo; não existem no espaço, não são movimentos, não são modificações da matéria, não são acessíveis à observação pública. As mentes não são peças do mecanismo de um relógio, são apenas peças que não são de um mecanismo de relógio. Assim representadas, as mentes não são simplesmente fantasmas acorrentados a máquinas: são elas próprias máquinas fantasmas. Embora o corpo humano seja um motor, não é um motor ordinário, dado que parte de seu funcionamento é governada por um outro motor interno – sendo este motor-governante [governor-engine] interior de uma espécie muito especial. É invisível, inaudível e não tem tamanho ou peso. Não pode ser desmontado e as leis a que obedece não são as conhecidas pelos engenheiros ordinários.
Nada se sabe sobre a forma como governa o motor corporal. Uma segunda dificuldade crucial aponta na mesma direcção. Dado que, de acordo com a doutrina, as mentes pertencem à mesma categoria que os corpos, e dado que o corpo é rigidamente governado por leis mecânicas, pareceu acertado a muitos teóricos que as mentes teriam que ser semelhantemente governadas por rígidas leis não-mecânicas. O mundo físico é um sistema determinista, e assim o mundo mental deveria ser um sistema determinista. Corpos não podem evitar as modificações a que estão sujeito, e assim as mentes não poderiam evitar a realização do destino que lhes foi fixado. Responsabilidade, escolha, mérito e demérito são portanto conceitos inaplicáveis – a menos que se adopte uma solução de compromisso, dizendo que as leis que governam os processos mentais, diferentemente das que governam os processos físicos, têm um atributo próprio, o de serem relativamente pouco rígidas. O problema do Livre Arbítrio era o problema de como conciliar a hipótese de que as mentes devem ser descritas em termos tirados das categorias da mecânica com o conhecimento de que a conduta humana de nível superior não é igual ao comportamento de máquinas. É uma curiosidade histórica o fato de nunca se ter notado que toda argumentação assentava num erro. Os teóricos supuseram correctamente que qualquer homem bom de cabeça já poderia aceitar as diferenças entre, digamos, expressões racionais e não racionais, ou entre comportamento intencional e automático. A parte disso, nada haveria a salvaguardar do mecanismo. Mesmo assim, a explicação dada pressupunha que um indivíduo nunca poderia, em princípio, reconhecer a diferença entre as expressões racionais e irracionais emitidas por outros corpos humanos, dado que nunca poderia ter acesso às postuladas causas materiais de algumas das suas expressões. Salvo a excepção, duvidosa, de si mesmo, uma pessoa nunca poderia dizer qual a diferença entre um homem e um Robô. Teria que se admitir, por exemplo, que, tanto quanto podemos saber, a vida interior das pessoas que são classificadas como idiotas ou loucas é tão racional como a de qualquer outra pessoa. Talvez só o seu comportamento visível seja insólito, isto é, talvez os “idiotas” não sejam realmente idiotas, nem os “loucos” realmente loucos. Talvez, também, muitas das pessoas classificadas como sãs sejam na realidade idiotas. De acordo com a teoria, os observadores externos nunca poderiam saber em que medida o comportamento visível de outras pessoas está correlacionado com as suas capacidades e processos mentais, e assim nunca poderiam saber nem sequer conjecturar plausivelmente se as suas aplicações dos conceitos de conduta mental para essas pessoas estariam certas ou erradas. Seria assim incerto ou impossível a uma pessoa reivindicar sanidade mental ou coerência lógica mesmo para si própria, visto que estaria impedida de comparar as suas próprias acções com as dos outros. Resumindo, as nossas apreciações sobre as pessoas e suas acções como inteligentes, prudentes, virtuosas ou estúpidas, hipócritas ou covardes, nunca poderiam ter sido feitas e, assim, o problema de estabelecer uma hipótese causal especial para servir de base a tal diagnóstico nunca teria sido posto. A questão “Em que é que as pessoas diferem das máquinas?” surgiu precisamente porque todos já sabiam aplicar os conceitos de conduta mental antes de as novas hipóteses causais terem sido introduzidas. Esta hipótese causal não podia portanto ser a fonte dos critérios usados nessas aplicações. Nem, evidentemente, a hipótese causal melhorou em qualquer grau a nossa maneira de lidar com esses critérios. Ainda distinguimos a boa e a má aritmética, a conduta política da impolítica, a imaginação fértil da falta de imaginação, do mesmo modo que Descartes os distinguiu antes e depois de ter especulado acerca de como a aplicabilidade destes critérios era compatível com o princípio de causação mecânica.
Descartes iludiu a lógica deste problema. Em vez de perguntar por que critério o comportamento inteligente se distingue efectivamente do não inteligente, perguntou: “Dado que o princípio da causação mecânica não nos diz qual a diferença, que outro princípio causal no-la dirá?” Concluiu que o problema não era de mecânica e supôs que devia ser, portanto, de alguma contrapartida da mecânica. Não raro a psicologia é chamada a desempenhar este papel. Quando dois termos pertencem à mesma categoria, podem construir-se proposições copulativas que os englobem. Assim, um consumidor pode dizer que comprou uma luva da mão esquerda e uma luva da mão direita, mas não que comprou uma luva da mão esquerda, uma luva da mão direita e um par de luvas. “Ela chegou em casa num mar de lágrimas e numa liteira” [She came home in a flood of tears and a sedan-chair]: é uma anedota bem conhecida [de Charles Dickens] baseada no absurdo de juntar termos de tipos diferentes. Seria igualmente ridículo construir a disjunção: “Ela chegou em casa ou num mar de lágrimas ou numa liteira”. É o que faz o dogma do Fantasma na Máquina. Mantém que existem corpos e mentes; que se produzem processos físicos e processos mentais; que há causas mecânicas dos movimentos corporais e causas mentais dos movimentos corporais. Argumentarei que estas e outras conjunções análogas são absurdas; deve no entanto notar-se que isto não quer dizer que qualquer das proposições ilegitimamente conjuntadas seja absurda em si mesma. Não nego, por exemplo, que existem processos mentais. Fazer contas de dividir é um processo mental, tal como contar uma piada. Mas digo que a frase “existem processos mentais” não significa a mesma espécie de coisa que é expressa por “existem processos físicos”, e portanto não faz sentido fazer uma conjunção ou uma disjunção das duas. Se a minha argumentação for válida, terá interessantes consequências. Primeiro, o consagrado contraste entre Mente e Matéria será dissipado, não pelas igualmente consagradas absorções da Mente pela Matéria ou da Matéria pela Mente, mas sim de um modo bastante diferente. Porque mostrarei que a aparente oposição dos dois é tão ilegítima como seria a oposição entre “ela chegou em casa num mar de lágrimas” e “ela chegou em casa numa liteira”. A crença de que há uma oposição diametral entre Mente e Matéria vem da crença de que são termos do mesmo tipo lógico. Seguir-se-á também que tanto o Idealismo como o Materialismo são respostas a uma pergunta inadequada. A “redução” do mundo material a estados e processos mentais, assim como a “redução” dos estados e processos mentais a estados e processos físicos, pressupõe a legitimidade da disjunção “Ou existem mentes ou existem corpos (mas não ambos) ”. Seria como dizer: “Ela comprou uma luva da mão direita e uma luva da mão esquerda, ou um par de luvas (mas não ambos)”. É perfeitamente correto dizer, com ar lógico, que existem mentes e com outro ar, também lógico, que existem corpos. Mas estas expressões não indicam duas espécies diferentes de existência, porque “existência” não é uma palavra genérica como “colorido” ou “sexuado”. Indicam dois sentidos diferentes de “existir”, tal como “subir” tem sentidos diferentes em “a maré está subindo”, “as esperanças estão subindo”, “a média de longevidade está subindo”. Pensar-se-ia que um homem estaria contando uma piada sem graça se dissesse que três coisas estão agora subindo, ou seja, a maré, as esperanças e a média de longevidade. Seria uma piada igualmente boa ou má dizer que existem números primos, quartas-feiras, opiniões públicas e marinhas de guerra; ou que existem mentes e corpos. Nos capítulos seguintes tento provar que a teoria oficial assenta num conjunto de erros de categoria, mostrando que provêm deles corolários logicamente absurdos. A exposição destes absurdos terá o efeito construtivo de apresentar parte da lógica correta dos conceitos de conteúdo mental.

(4) Nota Histórica

Não seria verdade dizer que a doutrina oficial deriva exclusivamente das teorias de Descartes, ou mesmo de uma ansiedade mais largamente espalhada a respeito das implicações da mecânica do século XVII. A teologia da Escolástica e da Reforma preparou os intelectos tanto dos cientistas como dos leigos, filósofos e clérigos desse tempo. As teorias estóico-agostinianas da vontade embeberam-se nas doutrinas calvinistas de pecado e graça; as teorias platónicas e aristotélicas do intelecto deram forma às teorias ortodoxas da imortalidade da alma. Descartes reelaborava doutrinas teológicas já predominantes a respeito da alma, na nova sintaxe de Galileu. O carácter privado da consciência [moral, conscience] defendido pelos teólogos tornou-se o carácter privado da consciência [psicológica, consciousness] defendido pelos filósofos, e o que tinha sido o trilho da Predestinação reapareceu como o trilho do Determinismo. Também não seria verdade dizer que o mito dos dois mundos não trouxe benefícios teóricos. Os mitos geralmente dão muitas boas contribuições, enquanto são novos. Um dos benefícios auferidos pelo mito para-mecânico foi tornar em parte ultrapassado o mito para-político então dominante. A mente e suas faculdades tinham anteriormente sido descritas por analogias com superiores ou subordinados políticos. A linguagem usada era a das leis, da obediência, da colaboração e da rebeldia, que sobreviveu e ainda sobrevive em muitas discussões éticas e em algumas epistemológicas. Assim como na física o novo mito das Forças Ocultas era um melhoramento científico do velho mito das Causas Finais, também na teoria antropológica e psicológica o novo mito das operações ocultas, impulsos e agências constituiu um melhoramento do antigo mito dos ditames, deferências e desobediências.
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